14 fevereiro, 2008

Parte 19: Brincadeira do Boi 1 - Um Hábito Concorrido

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Os homens chegavam do mar.
Havia sido uma longa jornada, a bordo dos barcos de pesca.
Cansados, mas com um brilho especial nos olhos, que refletia a alegria e a ansiedade interior.

As conversas eram amenas. Cumprimentos, perguntas rápidas sobre diversos assuntos, para sobrar mais tempo para o assunto principal, a farra do boi. Aí se percebia o quanto era significativo para aqueles homens trabalhadores, este folguedo que vinha de muitas e muitas gerações passadas.

A prática se perdia nos anos de 1500, quando começou a ser praticado nos Açores, particularmente na Ilha Terceira, onde continua a tradição, com o nome de “toiro a corda”.
Na referida época quinhentista, quando os primeiros colonizadores da Ilha Terceira chegaram para ficar, encontraram muito gado bravo, selvagem, resultantes dos que haviam sido soltos na ilha algumas dezenas de anos antes. Como a ilha era ponto de aguada e abastecimento das naus que demandavam da Ásia e das Américas, o gado passou a ser perseguido para o abate, a fim de ser transformado em charque.

O trabalho de agrupar o gado nos descampados, onde se fazia o abate, originou a farra do boi.
Homens e animais se revezavam nas corridas e sustos, até que os últimos cansavam e eram abatidos.

Desta época distante no tempo, sofrendo as transformações e adequações aos tempos modernos, sobrevive ainda a farra do boi, que mexe com o emocional e a sensibilidade do homem litorâneo, notadamente o ligado às lides do mar.

Seu Juvenal era um desses apegados à farra do boi.
Podia estar a muitas léguas da costa, tudo fazia para chegar a sua terra natal, no sábado de aleluia.
Os que moravam permanentemente no local já sabiam quais as providências que teriam que tomar para que a brincadeira da farra do boi não faltasse.

Chegou a Ganchos.
Mal saltou do ônibus, em companhia de muitos outros companheiros de diversão, e antes mesmo de ir ver a família, passou pela venda do seu Manoel para se inteirar se as providências de comprar o boi já haviam sido feitas.
- Seu Manoel quantos bois a turma resolveu soltar este ano? Quem está contribuindo para a bolada? Quanto vai tocar para cada um?
- Calmo homem, uma pergunta de cada vez, respondeu o interrogado.

Atentos, outros farristas, que como seu Juvenal acabava de chegar, escutavam as respostas dadas pelo vendeiro.
Discutindo e fazendo cálculos, entregaram ao bodegueiro a quantia estipulada.

Foram saindo, tomando cada qual o caminho da casa de seus familiares.
Agora sim, podiam ver a família, se inteirar das novidades, pois a mais de três meses estavam ausentes de seus lares.

Alguns casados, outros solteiros, estavam unidos pelo mais importante e original folguedo praticado em sua comunidade a centenas de anos.
Este era um dinheiro que mesmo que viesse a fazer falta para a sobrevivência da família, ninguém criticava.
Era como que um dever sagrado entre aqueles homens.
Dona Judite ficou feliz ao ver o marido entrar pela porta.
Correu ao seu encontro, sem conter algumas lágrimas.
As crianças que brincavam no terreiro, também correram e se grudaram nas pernas do pai, que não menos alegre e emocionado devolveu os carinhos recebidos.

No entanto, Dona Judite sabia que nos próximos três dias as atenções do seu Juvenal, como a de outros pescadores como ele, estaria voltado para a farra do boi.
Os que não eram da comunidade podiam falar o que quisessem, pois sentia muito orgulho de seu marido ser um “enticador de boi”.
Esta era uma brincadeira digna de homens.
E era uma das poucas, senão única vez no ano em que via seu Juvenal esquecer as lutas do dia-a-dia, para brincar livre e solto, qual uma criança.

Bendita brincadeira do boi, que fazia os homens se sentirem jovens, alegres e destemidos. Olhando o marido assim pensava: era o Juvenal que sonhava em sua vida, mas que só nesse período assim se mostrava.
Sacudindo os ombros, saiu cantarolando.

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